Nem santo, nem demônio. Cirúrgico.
Este é o médico. Gente como a gente. E o seu melhor papel deveria ser este: cirúrgico.
E o que exatamente isso significa?
Certamente não é que todo médico deve ser um cirurgião, nem que toda doença precisa ser operada. Ser cirúrgico significa ser certeiro, ir direto ao ponto ou, como se dizia antigamente, “acertar a mão”. Mas e se não conseguir?
Médicos foram endeusados ao longo da história da humanidade. Sobre seus ombros pesam o poder da cura e o livramento da morte. Eles também foram perseguidos e, mais do que tudo, foram temidos por muito tempo. As roupas brancas, que remetem aos anjos e à limpeza também fazem parte do pior pesadelo de muitas crianças e adultos.
Com raras exceções, a vida contemporânea começa e termina em um hospital e, ao longo dos anos, muitas visitas são feitas a esses profissionais, que têm o dom de livrar a dor, diminuir a ansiedade, regular a pressão, controlar a diabete, salvar de acidentes e descobrir centenas de doenças que vão ser ou não curadas, ser ou não remediadas e, consequentemente, gerar uma qualidade de vida melhor ou pior para quem as apresenta.
Tudo na sociedade moderna passa, em algum momento, pelo consultório médico. Seja para manter a saúde física ou mental, se manter magro ou gordo, curar males físicos ou psíquicos, extirpar a dor ou os sintomas que incomodam.
E é neste ponto específico que muitas pessoas se deparam neste exato momento. Receberam um diagnóstico que exige uma decisão: fazer ou não fazer um tratamento, tomar ou não tomar um remédio, encarar ou não encarar uma cirurgia, aceitar ou não aceitar uma quimio ou uma radioterapia.
O que vai acontecer se fizer? E se não fizer?
A decisão pode trazer muitas e muitas dores e duras consequências para a mobilidade, a fala e a liberdade. Ela também, dependendo do caso, pode gerar muitas e muitas alegrias, libertando a agonia, as dores, a dependência e trazendo a cura.
Iniciar um tratamento pode trazer mais ou menos tempo de vida, com ou sem qualidade, com muito, pouco ou nenhum sofrimento.
Vale a pena?
Dependendo do caso, a definição pode significar a expectativa de um maior ou menor tempo de vida, com igual ou menor autonomia. Escolher é mandatório. Conviver com as consequências da decisão também. A ajuda do médico é fundamental para esclarecer o que vai acontecer.
Perguntar, explicar, conhecer todos os efeitos colaterais, as limitações que podem ocorrer… Ter certeza do que se quer, ajuda muito na hora de bater o martelo e seguir ou não em frente.
O tratamento proposto vai trazer mais tempo de vida biológico ou biográfico? Se for biológico, como vai ser a vida? Na cama? Comendo por aparelhos? Dependendo de tudo e de todos para fazer qualquer coisa? Vai ser possível continuar com a mesma rotina de antes do tratamento? Trabalhar? Namorar? Passear?
Se for trazer tempo de vida biográfica, quanto tempo vai ser preciso ficar fora de combate, na recuperação? Quando vai ser possível retomar a vida e as atividades? Como vai ser o “depois”?
O tratamento vai ser leve ou invasivo? Vai deixar a pessoa sem falar e sem comer pela boca? Fazendo xixi por sonda? Com muitos ou poucos meses de hospital? Com qual expectativa de tempo de vida? Com que qualidade?
Ao identificar o tratamento, o médico vai ser cirúrgico. Mesmo que nenhuma cirurgia esteja envolvida. Ele vai localizar o problema e extirpá-lo, oferecendo a cura. Pode também apenas remediá-lo, ou usando uma expressão popular, “empurrá-lo com a barriga” até onde o paciente puder. Pode encontrar o problema e resolvê-lo imediatamente, ou ficar pesquisando, enquanto tenta a solução.
É verdade que muito se sabe sobre o corpo humano, mas o que ainda não se sabe e existe, também precisa de tratamento. E o que fazer e como agir deve ser uma decisão conjunta do médico e do paciente. A responsabilidade não pode ser só do médico, nem só do paciente. Deve ser construída dia a dia pelos interessados.
Essa reflexão não quer endeusar nem demonizar. Apenas rever o papel essencial, verdadeiro e funcional de todo médico: ir direto ao ponto, cirurgicamente, extirpando o que incomoda, resolvendo o que dói, aliviando os sintomas e indicando caminhos que levem, se possível à cura ou a uma vida estável e o mais saudável possível.
Se a saúde não tiver mesmo jeito e o caminho obrigatoriamente conduzir à morte – que é o fim que todos sabem que terão – espera-se que o paciente deixe suas diretivas antecipadas de vontade registradas em um Testamento Vital e que o médico, usando seu papel cirúrgico, proporcione uma morte digna, sem prolongamento desnecessário e, preferencialmente, com cuidados paliativos, sem dor.